quinta-feira, 19 de abril de 2007

A possível Revolução Energética

Le Monde diplomatique Brasil
por Antonio Martins

Num relatório alternativo sobre mudança climática, o Greenpeace propõe mobilização mundial para salvar o planeta. E demonstra, com base num amplo estudo científico: as soluções técnicas para a sustentabilidade já existem, e conduzem a lógicas e paradigmas pós-capitalistas


"Se a vida te der um limão, faz uma caipirinha", sugere um provérbio popular que expressa, gaiato, uma das características da alma brasileira mais valorizadas em todo o mundo: a capacidade de encarar os azares com humor, e de reagir criativamente a eles. Uma gravíssima ameaça ao futuro da Terra e da humanidade pode ser também uma oportunidade para superar as relações sociais que produzem desigualdade, desesperança e devastação. Semana passada, quando o Painel Internacional sobre Mudança Climática (IPCC, em inglês) divulgou seu novo relatório sobre as conseqüências dramáticas do aquecimento do planeta, o Greenpeace acelerou a difusão de um documento alternativo. Tem o nome de [R]evolução Energética.

Não pretende ser um contrapanto ao texto do IPCC, mas um complemento. Rompe a lógica da impotência social. Nos últimos anos, o pensamento conservador passou a ver o aquecimento da atmosfera e suas conseqüências como um fenômeno inevitável — algo semelhante a uma tragédia planetária para a qual caminhamos bovinos, como um rebanho que segue rumo ao matadouro. O Greenpeace quer despertar para o contrário. Não é tarde demais. A humanidade já desenvolveu formas de energia alternativas capazes de assegurar vida digna sem ameaçar a natureza. Para adotá-las, é preciso superar dois obstáculos.

O primeiro é político-ideológico. A idéia segundo a qual as sociedades têm o direito e a capacidade de construir seu futuro tornou-se uma heresia para o pensamento capitalista — que ainda é predominante. A afirmação da vontade coletiva desafia um dos dogmas centrais da ideologia neoliberal: o de que as sociedades devem esquecer o sonho perigoso de planejar seu futuro comum, e entregar seu destino à "mão invisível" do mercado — que assegurará liberdade, riqueza e felicidade.


O segundo obstáculo é econômico. Como se verá adiante, as fontes de energia alternativas não se diferenciam das tradicionais apenas por serem sustentáveis. Em todos os casos, sua produção adapta-se muito mais facilmente a um modelo descentralizado e desconcentrador de produção. A lógica não é mais gerar eletricidade em imensos empreendimentos comandados por corporações jurássicas. Até as pequenas comunidades devem e podem tornar-se autônomas em energia. Para tanto, não é preciso mobilizar enormes volumes de dinheiro. Um sinal de que o capitalismo pode estar sendo superado, também, no terreno em que sempre afirmou sua superioridade: o da "eficiência" produtiva.


Os cinco termos da equação

A força de [R]evolução Energética está na maneira como articula razão com utopia, e rigor científico com mobilização, para mudar políticas e atitudes. O relatório, assinado em conjunto pelo Greenpeace e pelo Conselho Europeu de Energia Renovável (EREC, em inglês) não parte de especulações, mas dos mais avançados dados técnicos disponíveis. As previsões sobre elevação da temperatura terrestre, em função do aumento de emissões de gases do efeito-estufa (especialmente gás carbônico, ou CO2) são as do IPCC [1]. As projeções sobre a emissão de CO2, caso mantida a atual matriz de fontes energéticas, são da Agência Internacional de Energia (IEA, em inglês). Os estudos sobre possível aumento da eficácia energética e sobre o uso de combustíveis renováveis são do Instituto de Termodinâmica Técinica (DLR), da Agência Espacial da Alemanha.

A partir dos dados fornecidos por estas instituições, monta-se uma equação política cujos termos principais são os seguintes:

1) A temperatura média da Terra vem subindo contínua e progressivamente, desde a Revolução Industrial, devido à emissão de CO2. Ao longo do século 20, a elevação foi de 0,6 grau. Há um consenso científico segundo o qual o planeta pode suportar no máximo um aumento suplementar de 2 graus centígrados, sem que se desencadeie uma espiral de efeitos retro-alimentadores e possíveis catástrofes naturais e humanas.

2) Como o efeito dos gases do efeito-estufa é cumulativo, e eles se mantêm na atmosfera por muito tempo, seria preciso, desde já, reduzir progressivamente sua emissão para evitar que a marca-limite de 2ºC seja alcançada.

3) Estima-se que, em 2030, as emissões deveriam ser 30% inferiores ao patamar atingido em 1990. No entanto, assistimos, nos últimos anos, a um aumento expressivo no consumo de energia e nas emissões de CO2. As projeções do IEA indicam que, mantida a atual proporção entre uso de combustíveis fósseis (80%), nucleares (7%) e renováveis (13%), o ser humano vomitará, em 2050, nada menos de 45,489 bilhões de toneladas de gás carbônico por ano na atmosfera. Essa perspectiva (chamada no documento do Greenpeace de cenário-referência) implicaria um aumento — catastrófico — de 96,71% em relação às emissões de 2003 (23,124 bilhões de toneladas).

4) O Protocolo de Quioto é, hoje, o único instrumento existente em plano internacional para estimular a redução das emissões. Porém, suas metas ainda são muito tímidas (redução de 5,2% em relação ao patamar de 1990, em 2012) e o mecanismo essencial adotado é débil e contraditório (penalização monetária das emissões de CO2, permitindo-se, porém, a comercialização do "direito" de poluir).

O quinto termo da equação é o decisivo: a vontade política de mudar. O Greenpeace sugere uma meta clara para estimular a mobilização e facilitar o exame dos progressos alcançados. Ao invés de dobrar as emissões de CO2 até 2050 (a hipótese tétrica do cenário-referência), a humanidade deveria se dispor a reduzi-las pela metade. O vasto leque de medidas capaz de permitir tal vitória está ligado a duas transformações decisivas e complementares: alterar radicalmente a matriz energética, para que, em 2050, as diversas fontes renováveis existentes (solar, eólica, da biomassa, hidrelétrica, geotérmica e oceânica) respondam por cerca de 50% da geração (uma proporção 3,8 vezes maior que a atual); repensar e modificar profundamente os hábitos de consumo e distribuição de energia, de modo que, sem abrir mão do bem-estar, as sociedades abandonem as posturas de alienação, ignorância e prepotência nas relações com a natureza e consigo mesmas.

No processo, seriam alcançados dois ganhos suplementares: um ligado à justiça social; outro, à cultura de paz. Seria eliminado o recurso à energia nuclear — que não libera gases do efeito-estufa, mas gera enorme risco de acidentes e estimula a produção de armas atômicas. Além disso, dois bilhões de novos usuários teriam acesso aos benefícios da eletricidade. Em 43 anos, surgiria o que o Greenpeace chama de cenário da revolução energética.

Continua:

A possível Revolução Energética é um texto em quatro capítulos:

II: "Um choque entres os dois modelos"

III: "Muito mais que novos combustíveis"

IV: "De que revolução se trata"

[1] Um dos co-presidentes do painel, o indiano Rajandra Pachauri, assina a Apresentação do relatório do Greenpeace

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