quarta-feira, 31 de outubro de 2007

O biodiesel e os desafios da inovação

O lançamento do Programa Nacional de Produção e uso do Biodiesel (PNPB) foi cercado de esperanças de que ele traria uma nova matriz de produção na área de energia, mais inclusiva do ponto de vista social e menos desgastante do ponto de vista ambiental. Mas não é bem assim.
Agência Carta Maior, 31/10/2007
por Georges Flexor


Embora as origens do biodiesel remontem à invenção do motor com ignição por compressão, desenvolvido pelo engenheiro alemão Rudolf Christian Karl Diesel no final do século XIX, e a primeira patente tenha sido atribuída ao brasileiro Expedito Parente nos anos 1980, sua incorporação efetiva à agenda das políticas enérgicas brasileiras só ocorreu no final da década de 1990 e início dos anos 2000. Entre outras iniciativas que marcaram o redescobrimento do potencial do biodiesel destaca-se o Programa Brasileiro de Biocombustíveis (Probiodiesel) lançado em 2002 e coordenado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT). Os principais argumentos avançados na época para a implementação do programa eram: 1) a diminuição da dependência dos derivados do petróleo; 2) a criação de novos mercados para oleaginosas; 3) o crescimento da demanda global por combustíveis alternativos e 4) a redução das emissões de gás carbônico.

No entanto, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência no final de 2002, o Probiodiesel acabou reformulado para incorporar a questão da inclusão social, um dos pilares da estratégia do governo “Lula”. Esse aspecto era, em particular, associado à possibilidade de usar o óleo de mamona na produção de biodiesel, incentivando a geração de renda e emprego no Nordeste, já que a matéria-prima era apropriada às condições socioambientais da região. Para institucionalizar o programa, foi estabelecida, por meio de um decreto em dezembro de 2003, a Comissão Executiva Interministerial encarregada da implantação das ações direcionadas à produção e uso de biodiesel como fonte alternativa de energia. Durante o ano de 2004, foram realizados vários estudos técnicos que comprovaram a viabilidade do biodiesel, apoiando-se nas seguintes decisões: em setembro de 2004, o governo editou a Medida Provisória 214 definindo o biodiesel e delegando competências à Agência Nacional do Petróleo para a sua regulação; 2) no final de novembro, foi aprovado um programa de apoio financeiro aos investimentos em biodiesel pelo BNDES e 3) no dia 6 de dezembro de 2004, foi oficialmente lançado pelo presidente da República o Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB). Ao mesmo tempo, instituiu-se o selo “Combustível Social”, concedido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) aos produtores de biodiesel que adquirissem matéria-prima dos agricultores familiares e lhes assegurassem assistência e capacitação técnica. Para incentivar a efetivação do selo, o PNPB institucionalizou uma redução das alíquotas da contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS, com coeficientes diferenciados em função da matéria-prima (mamona, soja, dendê etc.), da região de produção e do tipo de fornecedor (agricultura familiar ou agronegócio).

Uma vez sancionada a Lei do Biodiesel, iniciou-se a fase de implementação do programa. Apesar das expectativas suscitadas pelo seu caráter inovador, havia um alto grau de incerteza quanto ao andamento efetivo dessa fase. Em primeiro lugar, não era trivial a incorporação numa mesma esfera de ação pública de atores sociais tão distantes do ponto de vista dos interesses, valores, rotinas e cultura organizacional, como, por exemplo, a Petrobras e os agricultores familiares, ainda que o programa tenha proporcionado incentivos para tornar essa articulação efetiva.

Em segundo lugar, os problemas encontrados nos suprimentos de óleo de mamona causavam incertezas. Procurando solucionar esses problemas, representantes do MDA passaram a intensificar seu trabalho junto com sindicatos e movimentos sociais no intuito de dar maiores informações sobre as regras contratuais, os padrões de produção industriais e as oportunidades de renda e trabalho proporcionadas pelo PNPB. Esperava-se que essas organizações pudessem servir como agentes de transmissão de informações e conhecimentos junto aos produtores e estabelecer um grau de confiança sem o qual a continuidade do projeto poderia estar comprometida. Além disso, o MDA criou uma linha de financiamento do Pronaf para estimular a produção de mamona. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o MCT, a partir da mobilização dos recursos proporcionados pela rede brasileira de biodiesel, intensificaram seu trabalho de mapeamento das rotas tecnológicas viáveis, buscando sobretudo opções para diversificar as fontes de matéria-prima. Esses esforços tiveram o mérito de mostrar que havia várias soluções possíveis, como o dendê e o girassol, e até mesmo inesperadas como o pinhão manso. A Petrobras, do seu lado, passou a incentivar pesquisas para elevar a produtividade e descobrir novos usos para a “torta” de mamona objetivando elevar a lucratividade do negócio, embora cogitasse mais fortemente o uso de outras oleaginosas para garantir o suprimento.

As diferentes iniciativas visavam garantir credibilidade e viabilidade ao PNPB. No entanto, para muitos, sejam eles críticos ou torcedores do programa, o primeiro teste realmente significativo era vinculado aos resultados dos leilões públicos de venda de biodiesel, cujo desenho tinha sido idealizado para servir de matriz institucional inicial ao desenvolvimento do mercado e da indústria de biodiesel no Brasil. No primeiro leilão foram adquiridos 70.000 m3 de biodiesel, sendo 54,3% deste à base de óleo de mamona e vendido pela Brasil Biodiesel. As demais oleaginosas foram soja (38,6%) e dendê (7,1%). Os leilões posteriores, no entanto, revelaram uma série de problemas, minando parte do entusiasmo inicial e mostrando a necessidade de realizar ajustes institucionais e organizacionais para manter vivas as aspirações originais do PNPB.

O volume de biodiesel negociado nos leilões, por exemplo, não tem apresentado crescimento regular e a entrega da produção negociada encontra-se incerta. Segundo a ANP, entre janeiro e junho de 2007 foram produzidos 122 milhões de litros de biodiesel. Ainda que represente uma expansão da oferta, o volume é 30% inferior ao que deveria ser entregue até junho de 2007, de acordo com os contratos firmados no segundo leilão de biodiesel. Além disso, quase todas as empresas produtoras de biodiesel estão com sua produção abaixo do que foi prometido e parte do volume produzido não está em conformidade com as normas de qualidade estabelecida pela ANP, obrigando sua devolução pelas distribuidoras.

Em teoria, numa situação em que os preços do biodiesel compensam tanto os custos de produção quanto aqueles derivados dos problemas de coordenação entre os atores envolvidos, os leilões da ANP representariam uma opção atraente para as empresas e as expectativas de lucros incentivariam maior disciplina entre os agentes da cadeia. No entanto, os preços negociados nos leilões mostraram trajetória de queda enquanto os preços internacionais das principais matérias-primas, a soja em particular, estão subindo. Por outro lado, os problemas organizativos da cadeia de biodiesel – como a assistência técnica deficiente, logística inadequada, falta de fiscalização, mercado informal crescente, insegurança contratual e conflitos com governos estaduais, etc. – dificultam a coordenação entre os atores envolvidos no programa.

Esses problemas e suas possíveis conseqüências sobre a credibilidade e legitimidade do PNPB estão levando o governo e as demais partes interessadas no desenvolvimento do biodiesel a rever seus objetivos, critérios e modos de operar. Uma primeira linha de ação é a reafirmação do compromisso do governo federal com o desenvolvimento do biodiesel como parte da matriz energética de longo prazo. Em recentes viagens ao exterior, por exemplo, o presidente destacou que o biodiesel brasileiro é uma “semente que certamente vai dar muito fruto”.

A busca da maior integração entre os órgãos públicos, assim como entre os diversos atores da cadeia, representa um outro conjunto de ação relacionado com os ajustes necessários para manter o PNPB operacional. Uma iniciativa nessa direção foi empreendida para reunir, em Brasília, no dia 13 de junho de 2007, representantes da recém-criada União Brasileira do Biodiesel (Ubrabio) e o ministro do MDA, Guilherme Cassel. Para o governo, a criação da entidade é um elemento que pode proporcionar maior colaboração e facilitar a comunicação com os produtores de biodiesel. Essa busca por maior integração organizacional marcou, também a II Reunião do Selo Combustível Social que ocorreu em Brasília e reuniu representantes das empresas produtoras de biodiesel e da Petrobras, do Governo Federal, das instituições de apoio ao PNPB, como agentes financeiros e instituições de pesquisa, dos movimentos sociais e sindicais, das equipes técnicas e de supervisão dos Projetos Pólos Centro-sul e Nordeste e da equipe da Secretaria de Agricultura Familiar do MDA.

A esses esforços organizativos soma-se uma revisão do mix de matéria-prima capaz de sustentar o desenvolvimento do programa. Com efeito, visto que os preços dos dois principais componentes do biodiesel (soja e mamona) colocam em xeque a viabilidade do programa, seja porque o preço da soja aumenta (soja) seja em função do dos preços pagos pelas indústrias químicas e cosméticas pelo óleo de mamona, o alargamento da oferta se torna uma questão estratégica. Não por acaso, vêm se multiplicando estudos sobre o potencial energético do pinhão manso ou do dendê, considerada a matéria-prima mais viável para a produção de biodiesel, com rendimento de até 6 mil litros por hectare.

Do ponto de vista da dinâmica institucional, o lançamento do PNPB é interessante por vários motivos. Em primeiro lugar, destaca-se o grande número de organizações e instituições envolvidas na formulação do programa. De fato, além de 13 ministérios e várias estatais, participaram direta e indiretamente um conjunto heterogêneo de deputados e senadores, diversos institutos de pesquisa e centros tecnológicos, algumas associações empresariais e sindicatos. Essa formatação organizacional e institucional aponta para a complexidade dos valores e interesses em jogo na formulação de políticas públicas, tornando a identificação das causas e efeitos do processo de decisão um exercício bastante difícil. No mesmo sentido, a multiplicidade dos modos de coordenação, tanto em níveis interindividuais como interorganizacionais, implica o reconhecimento da diversidade de lógicas de ação, às quais recorrem os policy makers, e da complexidade das formas de governança da ação pública. Em segundo lugar, o PNPB, com seu foco na inclusão social, sua expectativa de crescentemente substituir as importações de diesel mineral e sua ambição de proporcionar um novo modelo de gestão do desenvolvimento agrário e energético, representa uma iniciativa corajosa e inovadora. No entanto, como toda inovação que modifica os parâmetros institucionais e organizacionais da implementação das políticas públicas, tradicionalmente setoriais, o PNPB requer ajustes, comprometimento e aprendizagem por parte dos atores envolvidos. Por fim, cabe assinalar que uma melhor compreensão desses processos demanda novas pesquisas e análises no assunto.

Georges Flexor é professor adjunto do Instituto Multidisciplinar IM/UFRRJ e pesquisador do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura OPPA/CPDA.

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